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A Criança nos dias de hoje, ela é escutada?

Fácil seria responder a pergunta que introduz este artigo com uma simples afirmativa ou negativa. Entretanto, esta decisão estaria revestida de uma inconsequência que desconsidera a complexidade do ato de educar uma criança nos dias atuais. Sim, porque escutar a criança dos nossos dias pressupõe considerar as suas necessidades e os seus desejos, pressupõe amá-la, prepará-la para a vida, educá-la, enfim, em dias turbulentos, cujas certezas de outrora se esvanecem no ar. Neste sentido, a resposta de quase todos os pais que se veem comprometidos com seus filhos seria na certa: “Sim, eu escuto meu filho! Eu o preparo para a vida.” Contudo, se nos propusermos a analisar o que tem sido educar na contemporaneidade, nos assustaremos com algumas ações, cujos propósitos se dizem educativos, assumidas por nós com a melhor das intenções.

O problema consiste no fato incontestável de que não temos tempo para parar, pensar e tomar decisões refletidas, afinal, o tempo nos consome, nos engole e o que nos resta afinal é agir irrefletidamente.

Portanto, neste momento, lhes convido: paremos alguns significativos minutos para pensarmos juntos o que seria educar uma criança, sobretudo, nestes tempos incertos.

Inicialmente, é fato que a criança muito pequena é movida pelo princípio de prazer[1]. Ela não adia a busca pela satisfação, pelo que lhe dá prazer, a exemplo, comer o que quer na hora que quer, bater ou morder um coleguinha caso encontre-se em suas mãos o brinquedo desejado etc. Os adultos que lhe cercam são os responsáveis por introduzirem na vida dessas crianças o princípio de realidade[2].

No que consiste o princípio de realidade? A capacidade de adiar uma satisfação melhor e mais duradoura, abrindo mão de outra menor e menos significativa face a primeira. Ou seja, a criança precisa aprender a se frustrar. Este princípio somente passará a reger a vida da criança se alguém (seu pai, sua mãe, sua professora...) o fizer de forma consistente e sistemática. Um exemplo corriqueiro e elucidativo: a criança precisa aprender que em paralelo ao brincar é necessário que reserve um tempo para os estudos, uma vez que ela demanda fazer a travessia da infância para a adultez. Mas abrir mão, temporariamente, do tempo livre para brincar lhe trará um ônus (estudar não é tarefa prazerosa se comparada ao brincar), mas também um bônus, a longo prazo, uma vez que o estudo é passaporte para a vida adulta, numa cultura letrada como a nossa, inserção esta que tanto a criança almeja. Enquanto estuda, a criança não brinca livremente e é esta falta (a do brincar) que alimentará seu desejo e lhe dará tamanha satisfação quando estiver a brincar. A falta valoriza o ter. É a falta que suscita o desejo. Ela é, portanto, constitutiva do ser humano. Quem impõe o desprazer à criança para daí advir um prazer mais duradouro e consistente é o adulto, ou deveria ser este o seu papel. No entanto, percebo que os adultos têm se eximido de cumprir o seu papel, educativo por excelência no trato com as crianças.

Outro problema que percebo é que as crianças têm pouco tempo para brincar nos dias corridos de hoje. Na ânsia de prepará-las para o futuro, reservamos para elas, no presente, agenda superlotada de afazeres, tal qual a de adultos (aulas de Inglês, de natação, de capoeira, sessão de terapia ocupacional, de psicopedagogia, de fonoaudiologia etc.) e responsabilidades também de adultos. A justificativa dos adultos: prepará-las cognitiva e emocionalmente para o vestibular, para o mundo do trabalho, para o futuro. Elas precisam ser capazes, competentes, adultos bem sucedidos. E o presente? Fica como?

As crianças se veem sufocadas, sem tempo para viver a infância e serem crianças de fato, ou seja, sem tempo livre para brincar e, neste ato, reelaborar suas questões, uma vez que no brincar (o fazer de conta que se é adulto) a criança lida com suas angústias, medos, receios, saudades e preocupações de forma a ressignificá-los ativamente. O ócio criativo, presentificado no brincar espontâneo, sem enredos prévios, é condição precípua para que a criança saia do lugar quase passivo em que se encontra e assuma a direção do seu processo de vida.

Outro aspecto relevante de reflexão: ao considerar as crianças incapazes de resolver suas próprias questões e conflitos, não estamos subestimando-as? No afã de protegê-las, tomamos a dianteira e desacreditamos da sua capacidade, por exemplo, quando as defendemos dos conflitos nos quais se envolvem com outras crianças e dizemos como elas têm que agir, ao invés de perguntarmos-lhes como se sentem em tais ocasiões, de que forma gostariam e pensariam agir. Desconsideramos a sua perspectiva e impomos a nossa, de adultos, a qual pensamos ser a mais acertada. A mensagem que, nas entrelinhas, comunicamos à criança com esta atitude revela-se: “Você não é capaz de resolver suas próprias questões!” Nós, adultos, quando brincávamos outrora na rua, com outras crianças, parceiras da nossa idade, sabíamos resolver os conflitos nos quais nos envolvíamos. Encontrávamos formas, estratégias, umas mais acertadas do que outras, de sair do impasse. Éramos e nos sentíamos capazes, inclusive quando a estratégia escolhida se revelava falha (aprendíamos também com os erros), e avançávamos de uma heteronomia para uma autonomia de pensamento e ação. Fortalecíamos a nossa autoestima porque nos sentíamos capazes.

Outro ponto que demanda discussão é a exposição ilimitada, não censurada, da criança aos saberes e conhecimentos pertencentes ao mundo adulto, uma vez que, hoje, ela se encontra demasiadamente exposta pela mídia à violência e à sexualidade, sem condições de sustentar e suportar o acesso a tais saberes. Decorre daí que a infância de hoje é bem viva, mas perturbada. As crianças do mundo contemporâneo formam e gestam novos sintomas (depressão infantil, hiperatividade, transtornos de diferentes ordens etc.), antes inexistentes na infância. O que se passa? Mas este é assunto para uma próxima conversa.

Qual é o papel, portanto, do adulto no ato de educar uma criança?

  • Manter a diferença adulto – criança e apresentá-la o princípio de realidade que interdita o princípio de prazer. Em outra linguagem: não ter medo de marcar a diferença e frustrar a criança quando se fizer necessário (é importante lembrar que inúmeras vezes se fará necessário frustrá-las e isto é saudável);
  • Reservar-lhe tempo para que viva a infância e a melhor forma é equilibrar o seu tempo entre os estudos e o brincar livre;
  • Permitir que a criança encontre meios de resolver suas questões rumo a uma maior autonomia de ação e pensamento. Acredite que ela é capaz!;
  • Barrar o acesso irrestrito da criança aos saberes pertencentes ao mundo adulto.

Desta forma, estaremos escutando as crianças, ao menos, dando os primeiros passos rumo a esta escuta, à sua forma de ser e estar no mundo, tão peculiar e instigante, quiçá, desafiadora para nós, adultos.

Daniela Radel: Educadora, Pedagoga e Psicopedagoga pela UFBA, Mestre e Doutora em Educação pela UNEB, Formação em Psicanálise
[1] Conceito desenvolvido por Sigmund Freud.
[2] Conceito desenvolvido por Sigmund Freud.